O dia em que não fotografei uma igreja

O dia em que não fotografei uma igreja

Antes de começar a contar essa história, preciso descrever o que aconteceu um dia antes dos fatos. Tudo começa a tomar forma numa sexta-feira, véspera do dia que completaria 40 anos da tragédia do edifício Joelma, em São Paulo. Comecei a ler alguns textos nos portais de notícias que contam o drama. Realmente, uma das grandes tragédias deste País e que marcou para sempre um edifício na capital paulista.

Uma das reportagens conta o lado assombrado daquele local, uma série de acontecimentos envoltos em mistérios. No meio deste texto, havia um link para outra  matéria cujo tema era os lugares conhecidos como mal-assombrados na capital paulista. Como gosto muito do assunto, fui ler esse também. Ele descrevia lugares onde pessoas diziam ver fantasmas, ouvir gritos, ter sentimentos estranhos entre outras coisas espirituais.

Um dos locais descritos era a Capela da Santa Cruz dos Enforcados e, acho que aqui, começou realmente o fato que se sucederia no dia seguinte. Como algumas pessoas já sabem, eu fotografo igrejas, templos, cemitérios e locais ligados à vida, à crença e à morte. O tema me fascina e sempre rendem fotos espetaculares. Esta capela fica na Praça da Liberdade, local que eu iria conhecer no dia seguinte, sábado. Eu nunca havia visitado essa região da cidade antes. Por um descuido meu não gravei a informação do nome da capela na memória.

Esse descuido gerou o primeiro ponto que costumo chamar de sorte na fotografia. Chegando ao bairro da Liberdade, logo de cara vi a capela, fica bem na praça e de longe pode ser vista. No entanto, ela não me chamou muito a atenção. Não me parecia assombrada e muito menos associei que era sobre ela que tinha lido no dia anterior. Para mim parecia apenas uma igrejinha bonitinha. A sorte começou a mudar quando em certo momento, andando pelas ruas do bairro, me deparo com outra capela, menor, escondida no final de um beco e, um tanto quanto assustadora. E é nessa capela que algo aconteceu que me arrepio cada vez que falo sobre ela, esses arrepios acontecem inclusive enquanto escrevo esse texto.

Mas antes de entrar nela, fomos almoçar. Fiquei pensando se essa seria a capela ao qual li na matéria do dia anterior. Terminado o almoço, resolvi ir até lá. Fiz de imediato algumas fotos do exterior, do beco, do sino, da cruz, do portão entre outras. Parti então para conhecer (e fotografar) seu interior. A capela é simples, mas um tanto quanto sombria. Ao adentrar, vi altares básicos com várias imagens de santos e  três pessoas rezando. Sempre que vou fotografar um solo sagrado eu encho meu coração de humildade e respeito, mostrando que estou ali apenas para emprestar o meu olhar sobre aquele lugar. Procuro não atrapalhar nem interromper nada.

Preparei-me então para fotografar. Foi aí que tive a primeira sensação me dizia “não, agora não”. Não foi uma voz ouvida, nem de alguém que estava por ali e nem do além, e sim uma sensação muito forte de aquele não era um momento para fazer a fotografia. Fiquei encanado com aquilo, já que estou acostumado com igrejas, cemitérios, templos e tudo mais.

Parei, baixei a câmera, observei bem em volta, nada parecia estranho. Observei então se não estava atrapalhando a oração de alguma das pessoas que ali estavam. Poderia ser essa a origem da sensação. Nada, elas nem me viam. Parti então para uma segunda tentativa. Foi só preparar a câmera e novamente me veio a mesma coisa, esse não é o momento. Saí.

Ainda sem entender direito o que estava acontecendo, resolvi fazer uma foto da sala das velas, que fica do lado de fora. Ali fiquei alguns minutos e fiz algumas fotos. Isso me fez crer que aquela primeira sensação era passageira, pois o velário faz parte da capela e ali eu consegui fotografar naturalmente. Voltei então para o lado de fora e contei o ocorrido para as pessoas que me acompanhavam. Depois de alguns minutos de conversa decidi entrar mais uma vez e tentar novamente fotografar o interior da capela. Já não tinha mais nenhuma pessoa lá rezando. Pensei então que agora a sensação não voltaria, já que não havia mais ninguém para eu atrapalhar. Quando encostei a câmera no rosto, e para meu espanto, mais uma vez tive a sensação de “de não faça essa foto hoje”.

Como disse anteriormente, minhas crenças me orientam a ter respeito em lugares sacros, e uma capela é um lugar sacro, decidi adiar a fotografia daquele lugar. Ainda encanado resolvi pesquisar sobre o lugar. Lá e a Capela dos Aflitos, uma capela erguida quando naquela região estava o Cemitério dos Aflitos, local onde eram enterrados indigentes, presos, pobres, não católicos e os enforcados no enforcadouro que existia onde é hoje a Praça da Liberdade.

Pesquisando mais à fundo, li sobre a história de um soldado do exército brasileiro chamado Francisco das Chagas (o Chaguinha) que foi enforcado no enforcadouro da praça. Sentenciado à morte depois de um levante contra seu comando que não pagava o soldo devido, nas duas primeiras tentativas (ou três, dependendo de quem conta), a corda arrebentou e ele não morreu. O povo que assistia, entendendo como um sinal divino, gritava por sua liberdade. Chaguinha então disse que se tivesse que morrer defendendo seus direitos que assim seria, tirou seu cinto de couro e o entregou ao carrasco dizendo que esse não arrebentaria. Aos gritos de “liberdade” emitidos pelo povo que assistia, o carrasco então pendurou o cinto e consumou o castigo mortal.

Nesse exato momento da história que estou narrando é feita a ligação entre as duas capelas. A Capela da Santa Cruz dos Enforcados foi erguida em homenagem a Chaguinha e foi na Capela dos Aflitos que ele ficou preso até ser levado à forca. E sabe o que realmente impressionou? Pesquisando mais tarde, descobri que a sala das velas a qual fotografei foi a cela onde Chaguinha passou sua última noite. Por respeito a algo que eu não sei descrever, não fotografei o interior da Capela dos Aflitos dessa vez, mas eu ainda volto lá. Essa foi a única vez que eu não fotografei uma igreja.

As 100 Sacras: Dia 22 – Velário da Capela dos Aflitos na Liberdade, São Paulo

As 100 Sacras: Dia 62 – Capela dos Aflitos na Liberdade, São Paulo